#b-navbar { display: none; }

quarta-feira, julho 07, 2004

Na Galilea, zurzido (e também bucólico) cata-vento da ilha de Maiorca, o espectador conheceu uma menina de três anos com cara de viúva. A criaturinha chama-se Gildarda, tal qual uma infanta goda, e tem os olhinhos próximos e pequeninos, o cabelo tristemente frouxo, as pernas curtas, o traseiro cheiinho e circunspecto, a voz de grilo, o gesto solene, a saíta plissada e a camisola cor verde alface. Gildarda, vendo bem, é um nojo de miúda. Gildarda nasceu viúva, tem já três anos de viuvez; se não recebe nem um chavo pela viuvez não é por culpa dela: os seguros sociais estão ainda na etapa do direito administrativo. Gildarda e o espectador, às vezes, brincam às cozinhas com feijões e grãos-de-bico. Gildarda é muito trabalhadeira, anda sempre bem disposta e puxa o lustro aos feijões com a ponta da combinação; então, o espectador (que não há maneira de assentar a cabeça) aproveita para lhe dar um pontapé ou para lhe deitar água nas costas. Gildarda chora, e o espectador, arrebanhando as suas últimas energias, consegue que a consciência lhe remorda um bocadinho, quase nada. Gildarda e o espectador, com as suas brincadeiras, divertem-se bastante.
Há quem nasça velho e quem morra, pasmado pelos anos, galharda ou ternamente jovem, conforme o temperamento e o ofício.No Livro dos Provérbios lê-se que a alegria da juventude é a sua força; há quem nasça tendo já abdicado sem o saber (da mesma forma que os príncipes nascem príncipes) e há quem morra com netos e como sem ter dado importância à briga. Para Cristina da Suécia, tudo o que é fraco é velho e tudo o que é forte, novo. Se calhar um dia descobre-se que o calendário não serve para medir a idade. Gildarda é uma velhinha respeitável (embalsamável) que acaba de nascer. Quando Gildarda chegar, aos seus vinte e cinco anos, à senilidade, o espectador - se Deus se dignar a tal - terá de ser procurado nos campos onde se joga à moeda, às caricas e à bola.
- Chuta, Camilo, que estamos empatados a dezoito!
Gildarda, então, gritando como uma possessa "que horror!", "que horror!", correrá para se refugiar na delicada sombra onde vivem, se reproduzem e morrem os misteriosos e cautelosos cogumelos do mais atroz esquecimento. Pior para ela!

Camilo José Cela